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Ditaduras e Janelas

Vivi a ditadura quando criança e mocinha. Não sofri impactos diretos, como a família Rubens Paiva, mas vivíamos com medo. Meu pai não me deixava ouvir Chico Buarque no volume que todo jovem sem fone de ouvido gostava de ouvir. Vinha sempre uma bronca por ser feliz, dançar e cantar livremente, assim como fazem no filme “Ainda Estou Aqui” as filhas de Rubens e Eunice, cantando « Je t’aime moi non plus ».

Ainda escuto a voz, momentaneamente ríspida e grave, do meu pai:

– Abaixa esse som! Já falei que você não pode ouvir essa música nesse volume.

Enquanto falava ia para a janela observar se alguém havia testemunhado que na casa dele éramos todos admiradores da obra de um « subversivo » (termo que escutei muitas vezes quando algumas pessoas descreviam o Chico) e por isso culpados.
Meu pai fechava a janela, enclausurando o som, meu ar, minha liberdade, sem que de fato eu entendesse qual era o pecado ou crime de escutar tais músicas, e sem perceber que eu não era a única que me sentia sufocada, pois, na verdade, nossa liberdade estava enclausurada, ainda que com as janelas escancaradas.

« Não pode » era a frase que eu mais ouvia nos anos 70.

Não poder fazer algo numa democracia, é garantir o direito e respeito de todos.
Não poder fazer algo em qualquer ditadura, ou regime cujas leis beneficiam apenas uma parte, significa obedecer o direito de parte, deixando a maioria sem direito e sem respeito, o que vai absolutamente contra a proposta da democracia e do bem comum.

Há de haver algum distúrbio grave em quem é capaz de deliberadamente fazer mal, matar, torturar, castrar e resolver que pode tirar o direito de ser livre de seu próximo. Mas, mais preocupante, a meu ver, são as pessoas que seguem e suportam extremistas. Primeiro porque uma andorinha só não faz verão, então um desequilibrado sozinho é só um desequilibrado. Segundo porque, ou os seguidores sofrem de distúrbios graves também, o que seria um diagnóstico real para uma sociedade doente, ou, pior ainda, são pessoas sem questionamentos que são facilmente manipuladas e envolvidas em discursos calorosos desequilibrados, e uma vez envolvidos pelos discursos, elevam um desequilibrado a um ditador.

Reviver, ainda que no cinema, uma versão incomparavelmente mais terrível da ditadura do que a vivida por mim e pelos meus, me fez mal. Ser realisticamente lembrada o quanto a nossa liberdade pode ser tirada, num piscar de olhos, por qualquer poder desequilibrado, que tira mesmo o estado de direito, me deixou frágil. Sofrer esse nível de bullying com submissão compulsória é inimaginável.

Então, respirei aliviada ao pensar que isso é passado e que ninguém com uma boa memória ou com uma boa ferramenta artística, que registra uma época e não nos deixa esquecer as atrocidades desta época ou mesmo dos autores, permitiria que retrocedêssemos a um nível tão baixo.

Em seguida, penso mais um pouco e vejo que não somos totalmente livres pois somos vítimas constantes de outro tipo de violência nesse país: preconceito, discriminação, racismo, homofobia, capacitismo, insegurança, roubos, desemprego, pobreza, corrupção… e a lista é grande!

Penso além: Venezuela, Rússia, Ucrânia, Síria, Gaza, EUA…e onde meu pensamento parou foi no Afeganistão.
Minha janela fechada na ditadura me sufocava. Eu nunca pensei como seria se eu nem pudesse ter janela…
Por vezes parece surreal que na atualidade ainda exista esse nível de violência, de abuso de poder, de castração.
Só almas muito doentes e inseguras podem ser tão castradoras!

E mais surreal ainda é não poder parar o bullying sem começar um conflito maior, que pode levar a mais agressões, mortes, dores e guerras.
O que nos livra de sermos bullys também, pois sabemos das atrocidades e não fazemos nada relevante?
Somos tão impotentes assim? Ou será só covardia?

Será que quando estávamos tendo nossa liberdade roubada, com pessoas entrando em nossas casas, sem convite, mas no “direito” de invadir e levar as pessoas embora, torturar, e escolher matar ou devolver quebrada para o mundo, não esperávamos um milagre também?

Ao acordar costumo pedir luz e paz para a humanidade. Acabo pensando nessas mulheres do Afeganistão, pedindo por elas, e sonho de olhos abertos com a arte do futuro (espero próximo) que irá contar como era absurda a vida por lá nesse período sem luz, para que nunca ninguém esqueça como o poder extremista (de qualquer lado ou origem) é nocivo.

Exalto a arte e o poder que a arte tem de paralisar o tempo contando sua história, sem filtros, e de manter as mentes abertas ao mostrar sociedades e crenças tóxicas.
Exalto as pessoas que ainda escolhem a arte, as imagens e as palavras como complemento do movimento íntimo e como instrumento de luta sem violência.
Exalto as mulheres, principalmente as que precisam de muita força e coragem para sobreviver mesmo sendo cobertas, trancadas, arrancadas e apagadas da sociedade, apenas para não brilhar mais do que seus próprios carrascos!

Só viveremos num mundo mais equilibrado quando o caráter for guiado pela moral e respeito a tudo que nos cerca. Respeito ao próximo, à natureza e à vida.
Enquanto houver desrespeito, haverá sofrimento e a vida seguirá em desequilíbrio. O que podemos fazer para mudar essa situação?