
Cadeiras e Liberdade
Certa vez vi uma documentário sobre Cuba. Sem querer valorizar a falta de liberdade ou romantizar o sofrimento das vítimas desta ditadura, das consequências e da pobreza presente ali, eu vi algo que me trouxe certa paz, mas que não justificaria de forma alguma a ditadura e a privação de um povo oprimido. As pessoas conversavam na calçada, sentadas em cadeiras em rodas de família, vizinhos e amigos. Claro que a falta de tecnologia colaborava muito para esse comportamento.
Quando criança podíamos brincar na rua. Andar de bicicleta, correr, pedalar um triciclo pela calçada, enquanto minha avó se sentava em uma cadeira na calçada, nos observando e garantindo nossa segurança. Seus medos estavam ligados à descida da rua que nos embalava e poderia causar quedas se não controlássemos a velocidade e aos eventuais veículos que passavam na rua. Mas nunca à nossa segurança em relação a algum tipo de violência.
Mesmo durante a adolescência, nas férias numa casa de praia, me lembro de colocar as cadeiras de praia de frente para o portão vazado para todas as meninas da rua enquanto os meninos ficavam do lado de fora em cadeiras também, conversando conosco durante a madrugada, sem medo de nenhuma violência externa.
Quantos anos novos passei na praia, de pele ardida e alma tranquila, junto da família e de muitos amigos, pulando sete ondinhas, dando o primeiro mergulho do ano e algumas vezes, com sorte, esperando a maravilhosa lua cheia nascer no mar e no amanhecer o sol, para só então ir para casa maravilhada, feliz, em comunhão com a natureza e repleta de esperança com o novo ciclo.
Na vida adulta comecei a percorrer outros caminhos, que me desviaram deste hábito jovial e familiar. Quando, enfim, eu voltei, o mundo era outro e esse cenário se tornou perigoso.
Viver se tornou perigoso!
Quando meu filho era pequeno estivemos em Balneário Camboriú e pude ver algumas pessoas nas cadeiras de praia, na calçada, após determinado horário. Claro que ninguém tinha um celular na mão ou no bolso. Apenas uma cuia com chimarrão ou quiçá tererê. De frente para a avenida beira-mar, as pessoas curtiam o movimento, a brisa, a conversa. Me lembrei do documentário de Cuba e achei inusitado que nos anos dois mil e dezessete ainda existissem lugares onde era possível se sentar placidamente na calçada e apenas desfrutar a vida, sem medo.
Mas no começo deste ano de dois mil e vinte e cinco me surpreendi. Em Santo André tem uma rua que sempre me pareceu e me trouxe uma ambiência de interior, pelo comércio pequeno onde as pessoas se conhecem e não parecem tão apressadas ou desconectadas quanto as que normalmente vivem numa cidade industrial.
Passando pela rua, no final de uma tarde quente de janeiro, vi um casal sentado na calçada com suas cadeiras de praia, enquanto algumas crianças brincavam e corriam na calçada.
Meu primeiro impacto foi temer por eles. Chamei-os de corajosos em meu pensamento. Em seguida senti uma esperança, como se, porque algumas pessoas tinham coragem de estar na calçada sem medo de uma violência, um assalto, era porque, talvez, a vida pudesse novamente encontrar um caminho de liberdade e equilíbrio.
Então percebi que meu sentimento veio do fato que me sinto prisioneira muitas vezes. E mais do que isso, me sinto impotente!
Sair de casa pode ser uma atividade arriscada muitas vezes. E outras vezes o risco é tão grande que nem precisamos sair, ele mesmo entra nos nossos carros e nas nossas casas.
E voltei a pensar em Cuba… eles eram livres na calçada, mas não muito além dela…
A liberdade é uma das maiores maravilhas que temos na nossa existência. E ela pode ser tirada de tantas formas:
Uma cidade violenta que não vai direto ao ponto para cuidar da segurança ou bem estar; uma relação que consegue envolver tão ardilosamente enquanto abafa e molda uma personalidade a seu bel prazer; a falta de dignidade principalmente quando não há recursos mínimos (e o que seria mínimo sem considerar a possibilidade além do necessário para sobreviver?); ser vítima de qualquer tipo de preconceito (racismo, capacitismo, homofobia, etc) e ter o seu direito negado por alguém que apenas se sente superior, mesmo sem ser, e bebe na mesma fonte que um dia Hitler bebeu; não poder ir além porque, violentamente, alguém determinou o tamanho dos seus passos e do seu país e que levará, mais cedo ou mais tarde, a problemas econômicos; a indignidade quando uma sociedade não dá oportunidades para todos…
Você teria coragem de colocar a sua cadeira na sua calçada e ficar ali tranquilamente, vendo o cair da tarde e curtindo a brisa da noite, conversando com os vizinhos, sem medo de violência e sem o aprisionamento da tecnologia (maravilhosa, mas perniciosa também) e sem se sentir pressionado a fazer qualquer outra coisa além de apreciar a vida?
Uma cadeira na calçada é tão somente uma cadeira na calçada, exceto quando ela representa liberdade e tranquilidade perdidas de uma sociedade.